Par de chinelos

Tenho os pés compridos com os dedos finos. Assim como minha irmã, a maioria dos rocharada e meu pai também tinha. Além da herança genética, fiquei com poucos pertences dele. Uma jaqueta jeans (que ele não tirava do corpo), um boné dos Açores, que comprei em Ponta Delegada, e um par de chinelos de cor bege. O boné e a jaqueta foram presentes meus, o chinelo não tenho certeza. Lembro de ter dado um par de chinelos em alguma data comemorativa, mas acho que eram pretos. Tinha esperanças de que ele se recuperasse do AVC e viesse um dia a usá-los.


Mais do que coisas materiais, deixou-me a simplicidade, a bondade e a honestidade. Ele sempre foi muito trabalhador, e nos deixou o ensinamento: quem trabalha não tem tempo de pensar em coisa errada. Trabalhe com honestidade que um dia o resultado vem. Neste mês fazem seis meses que ele nos deixou. Eu tinha a intenção de deixar o par de chinelos bege apenas como relíquia, mas acabei arrebentando meu antigo e passei a usá-los. Saí na rua à noite para apanhar um lanche que pedi na pizzaria próximo de casa, e os visto meio que sem notar. Com passos apressados no asfalto olho para meus pés e reconheço os do Seu David. Percebo que ele sempre estará comigo.

Agora a tristeza do luto começa a dar lugar à saudade. Como o tempo passa rápido. E eu, próximo de chegar aos quarenta, talvez a metade da vida, reflito e relembro. Respiro e caminho. Eu e o par de chinelos.

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